quinta-feira, 26 de setembro de 2013

É fácil criticar

Dizer  da boca para fora “gosto” ou “não gosto” é muito mais fácil do que sentir cá dentro a evolução de um sentimento positivo ou negativo, sobretudo, em determinados contextos, já por si “especiais”.
Para mim, à primeira vista, gosto de todas as meninas do orfanato. À segunda vista já não é bem assim. Com o convívio fui-me dando conta que algumas meninas não as gostaria de ter para mim, nem oferecidas ou recheadas com molho de chocolate.

Em Moçambique conheci pessoas extraordinárias mas, também, percebi que a cultura da necessidade cria muitos “bandidos”. É dificil confiar a 100% nas pessoas, por muito queridas que sejam. E isto aplica-se a um rango dos 0 aos 100 anos. De trás de tudo isto está, como não poderia deixar de ser, o peso dos 500 anos de escravatura: “O branco não é de confiança mas tem dinheiro, portanto vamos aproveitar”. E esta maneira de ser é transversal a diferentes contextos e situações. Aqui no orfanato, as meninas também fazem “bandidagens” com o carinho e com a atenção.

Do meu ingénuo estereotipo dum orfanato faziam parte alguns conceitos muito cor-de-rosa. Por exemplo, eu pensava que as meninas não eram invejosas umas com as outras. Que o facto de todas necessitarem faria com que fossem compreensivas e, inclusivé, se alegrassem quando uma tivesse algo mais e estivesse disposta a partilhar. Não só são invejosas, como fazem trinta por uma linha para conseguirem manipular a atenção daqueles que chegam vindos de fora.

Também me deixavam louca (e ainda deixam) a indisciplina na sala de aula e a falta de concentração. Mesmo as meninas que no pátio são extremamente bem educadas, na sala de aula tornam-se feras.  Mas o que mais me intrigava ao início era a capacidade nata para esquecerem tudo de um dia para o outro. Uma menina que num dia se porta bem, acerta as contas todas, as letras, as sílabas etc...no dia seguinte é bem provável que não saiba nada. Como se durante a noite a sua mente tivesse sido assolada por um vendaval que varreu tudo. E, assim, fui descobrindo muitas vigarices e bandidagens entre elas e comigo. Involuntáriamente comecei a gostar mais de umas que de outras. Não deixava transparecer os meus sentimentos, porque sou consciente do lugar onde estou. Num orfanato todas necessitam de grandes doses de auto-estima, no entanto não podia evitar, cá dentro do meu peito, sentir o rum-rum do meu coração, quando algumas delas se aproximavam ou, pelo contrário, sentir certo aborrecimento quando se aproximavam outras. Por isso, comecei este texto por dizer que é muito mais fácil sentir certos sentimentos, em deterimento de outros.

Comecei a queixar-me às irmãs de alguns comportamentos de algumas meninas. E foi quando me começaram a ser abertas as portas para conhecer melhor o historial de algumas meninas. Mesmo antes de ter acesso a essa informação, não tinha qualquer dúvida de que, para estarem aqui, é porque a vida já tinha sido muito madrasta com elas. Nos países mais pobres as crianças já nascem à partida condenadas e isso não é nada justo.

A F. de 12 anos é mentirosa compulsiva. Está sempre a inventar histórias e põe uma cara de pena tão penosa que é impossível não ficar com o coração partido ao vê-la e ouvi-la. Ao principio parecia-me que tinha uma extrema necessidade de atenção e carinho. Justifiquei com as suas carências as dificuldades que demonstrava com as letras. Todas as meninas e a formadora me diziam que a F. não sabia ler. Comecei, pois, a trabalhar com ela e a personalizar a minha forma de a ensinar. Convidei-a para vir à casa dos hóspedes, sentava-a ao meu lado e punha-a debaixo do meu sovaco, como gosto tanto de fazer com os meus sobrinhos. Em qualquer momento que a encontrava por aí convidava-a para ler. Com grande desgosto percebi que a F. sabe ler perfeitamente (com as dificuldades típicas das crianças que não têm o hábito e leitura) e que se dedicava a fazer “teatro” para conseguir captar a minha atenção. Seguiram-se depois uma sucessão de mentiras. Foi quando descobri que a mãe da F. é prostituta e que a F., quando ainda vivia com a mãe, num ambiente bastante hóstil, era utilizada como transporte de droga entre outras misérias humanas às quais qualquer ser humano, sobretudo sendo criança, deve ser privado.

A S. e a C., ambas de 10 anos, irmãs, portam-se qual delas pior. São umas terrivéis, autênticas crianças-furacão. Chegaram ao orfanato há menos de um ano e quando chegaram não falavam português. Ambas têm dificuldades para aprender e, sobretudo, não conseguem estar concentradas mais de meio segundo. Confesso que são o tipo de crianças que não gosto de ter na minha sala de aula porque onde estão criam confusão (atenção: não gostar de as ter como alunas, não significa que seja menos professora com elas). Parti do principio que vinham de um ambiente de violência e que por isso eram, elas próprias, tão violentas e agitadas. Descobri que nas cheias de Fevereiro deste ano a polícia as resgatou de um telhado onde, juntamento com outros vizinhos, permaneceram bastante tempo como unica forma de sobreviverem. A desnutrição pela qual passaram não foi o pior. O pior foi ter de ver, desde o alto, lá no telhado, todos os cadáveres que a água arrastava. Na mesma altura perderam a mãe e a C. quando chegou ao orfanato, além de ter muita febre, ficou duas semanas sem falar.

A A., de 9 anos, pelo contrário é um Ás nas aulas. Quando as outras ainda nem sequer acabaram de copiar, a A. já copiou e resolveu os exercícios e já está a pedir mais. É maravilhoso dar-lhe aulas. Também me pareceu sempre uma criança muito bem resolvida com a sua história. Não demonstrava demasiada necessidade de carinho. Ao contrário das outras, que preferem estar penduradas nos nossos pescoços, a A. prefere sempre e acima de tudo jogar e brincar. Esta criança é uma fortaleza. Quando era pequena viu o pai assassinar a mãe degolando-a. Nos anos que se seguiram à morte da mãe, quando a A. brincava com a sua irmã, pegava numa caneta e encenava a morte da mãe. Atribuo a sua boa educação e temperamento doce ao facto de estar a ser criada por uma avó que, segundo ouvi, é uma mulher maravilhosa.


Aqui cada menina traz com ela uma carga muito pesada. Não posso evitar gostar mais de umas que de outras, mas quem sou eu para as criticar? Defendo que se estas crianças pudessem ser adoptadas (a lei de adopção em Moçambique é muito fechada) e ter um lar, a pedra dura que levam na cabeça e, às vezes, no coração, poderia ser esculpida.

1 comentário:

Konigvs disse...

É curioso como, há coisa de duas semanas, estive à conversa com uma prima que encontrei num funeral, e com quem habitualmente não estou. Fomos conversando e a determinada altura falamos de preferências. Ela tem três irmãos e diz-me logo "é tão óbvio de quem os meus pais gostam mais" mas também acrescentou "mas eu também, de eles os dois, sei muito bem quem prefiro, basta só imaginar a morte de um, ou a morte de outro". Claro que os pais que têm mais que um filho dizem sempre que gostam deles por igual, é "politicamente correto", se calhar até se querem convencer mesmo disso, mas existem sempre preferências, muitas vezes mais claras para quem vê de fora. E eu estou em crer que é assim com tudo.
Quanto à questão da adoção, seja em África ou noutro qualquer país do mundo, acho que não deveria ser permitido que nenhuma criança nascesse sem pais ainda que adotivos. Portugal deu um pulo civilizacional com o casamento homossexual, mas perdeu-se a oportunidade de permitir que mais crianças pudessem ser adotadas, retirando-as de instituições, que muitas vezes em vez de as proteger, as agridem e marcam negativamente para o resto da vida.