Dizer da boca para fora “gosto” ou “não gosto” é
muito mais fácil do que sentir cá dentro a evolução de um sentimento positivo
ou negativo, sobretudo, em determinados contextos, já por si “especiais”.
Para
mim, à primeira vista, gosto de todas as meninas do orfanato. À segunda vista
já não é bem assim. Com o convívio fui-me dando conta que algumas meninas não
as gostaria de ter para mim, nem oferecidas ou recheadas com molho de
chocolate.
Em
Moçambique conheci pessoas extraordinárias mas, também, percebi que a cultura
da necessidade cria muitos “bandidos”. É dificil confiar a 100% nas pessoas,
por muito queridas que sejam. E isto aplica-se a um rango dos 0 aos 100 anos.
De trás de tudo isto está, como não poderia deixar de ser, o peso dos 500 anos
de escravatura: “O branco não é de confiança mas tem dinheiro, portanto vamos
aproveitar”. E esta maneira de ser é transversal a diferentes contextos e
situações. Aqui no orfanato, as meninas também fazem “bandidagens” com o
carinho e com a atenção.
Do
meu ingénuo estereotipo dum orfanato faziam parte alguns conceitos muito
cor-de-rosa. Por exemplo, eu pensava que as meninas não eram invejosas umas com
as outras. Que o facto de todas necessitarem faria com que fossem compreensivas
e, inclusivé, se alegrassem quando uma tivesse algo mais e estivesse disposta a
partilhar. Não só são invejosas, como fazem trinta por uma linha para
conseguirem manipular a atenção daqueles que chegam vindos de fora.
Também me deixavam louca (e ainda deixam) a
indisciplina na sala de aula e a falta de concentração. Mesmo as meninas que no
pátio são extremamente bem educadas, na sala de aula tornam-se feras. Mas o que mais me intrigava ao início era a
capacidade nata para esquecerem tudo de um dia para o outro. Uma menina que num
dia se porta bem, acerta as contas todas, as letras, as sílabas etc...no dia
seguinte é bem provável que não saiba nada. Como se durante a noite a sua mente
tivesse sido assolada por um vendaval que varreu tudo. E, assim, fui
descobrindo muitas vigarices e bandidagens entre elas e comigo.
Involuntáriamente comecei a gostar mais de umas que de outras. Não deixava
transparecer os meus sentimentos, porque sou consciente do lugar onde estou.
Num orfanato todas necessitam de grandes doses de auto-estima, no entanto não
podia evitar, cá dentro do meu peito, sentir o rum-rum do meu coração, quando algumas
delas se aproximavam ou, pelo contrário, sentir certo aborrecimento quando se
aproximavam outras. Por isso, comecei este texto por dizer que é muito mais
fácil sentir certos sentimentos, em deterimento de outros.
Comecei a queixar-me às irmãs de alguns
comportamentos de algumas meninas. E foi quando me começaram a ser abertas as
portas para conhecer melhor o historial de algumas meninas. Mesmo antes de ter
acesso a essa informação, não tinha qualquer dúvida de que, para estarem aqui,
é porque a vida já tinha sido muito madrasta com elas. Nos países mais pobres
as crianças já nascem à partida condenadas e isso não é nada justo.
A F. de 12 anos é mentirosa compulsiva. Está sempre
a inventar histórias e põe uma cara de pena tão penosa que é impossível não
ficar com o coração partido ao vê-la e ouvi-la. Ao principio parecia-me que
tinha uma extrema necessidade de atenção e carinho. Justifiquei com as suas
carências as dificuldades que demonstrava com as letras. Todas as meninas e a
formadora me diziam que a F. não sabia ler. Comecei, pois, a trabalhar com ela
e a personalizar a minha forma de a ensinar. Convidei-a para vir à casa dos
hóspedes, sentava-a ao meu lado e punha-a debaixo do meu sovaco, como gosto
tanto de fazer com os meus sobrinhos. Em qualquer momento que a encontrava por
aí convidava-a para ler. Com grande desgosto percebi que a F. sabe ler
perfeitamente (com as dificuldades típicas das crianças que não têm o hábito e
leitura) e que se dedicava a fazer “teatro” para conseguir captar a minha atenção.
Seguiram-se depois uma sucessão de mentiras. Foi quando descobri que a mãe da
F. é prostituta e que a F., quando ainda vivia com a mãe, num ambiente bastante
hóstil, era utilizada como transporte de droga entre outras misérias humanas às
quais qualquer ser humano, sobretudo sendo criança, deve ser privado.
A S. e a C., ambas de 10 anos, irmãs, portam-se qual
delas pior. São umas terrivéis, autênticas crianças-furacão. Chegaram ao
orfanato há menos de um ano e quando chegaram não falavam português. Ambas têm
dificuldades para aprender e, sobretudo, não conseguem estar concentradas mais
de meio segundo. Confesso que são o tipo de crianças que não gosto de ter na
minha sala de aula porque onde estão criam confusão (atenção: não gostar de as
ter como alunas, não significa que seja menos professora com elas). Parti do
principio que vinham de um ambiente de violência e que por isso eram, elas
próprias, tão violentas e agitadas. Descobri que nas cheias de Fevereiro deste
ano a polícia as resgatou de um telhado onde, juntamento com outros vizinhos,
permaneceram bastante tempo como unica forma de sobreviverem. A desnutrição
pela qual passaram não foi o pior. O pior foi ter de ver, desde o alto, lá no
telhado, todos os cadáveres que a água arrastava. Na mesma altura perderam a
mãe e a C. quando chegou ao orfanato, além de ter muita febre, ficou duas
semanas sem falar.
A A., de 9 anos, pelo contrário é um Ás nas aulas.
Quando as outras ainda nem sequer acabaram de copiar, a A. já copiou e resolveu
os exercícios e já está a pedir mais. É maravilhoso dar-lhe aulas. Também me
pareceu sempre uma criança muito bem resolvida com a sua história. Não
demonstrava demasiada necessidade de carinho. Ao contrário das outras, que
preferem estar penduradas nos nossos pescoços, a A. prefere sempre e acima de
tudo jogar e brincar. Esta criança é uma fortaleza. Quando era pequena viu o
pai assassinar a mãe degolando-a. Nos anos que se seguiram à morte da mãe,
quando a A. brincava com a sua irmã, pegava numa caneta e encenava a morte da
mãe. Atribuo a sua boa educação e temperamento doce ao facto de estar a ser
criada por uma avó que, segundo ouvi, é uma mulher maravilhosa.
Aqui cada menina traz com ela uma carga muito
pesada. Não posso evitar gostar mais de umas que de outras, mas quem sou eu
para as criticar? Defendo que se estas crianças pudessem ser adoptadas (a lei
de adopção em Moçambique é muito fechada) e ter um lar, a pedra dura que levam
na cabeça e, às vezes, no coração, poderia ser esculpida.
1 comentário:
É curioso como, há coisa de duas semanas, estive à conversa com uma prima que encontrei num funeral, e com quem habitualmente não estou. Fomos conversando e a determinada altura falamos de preferências. Ela tem três irmãos e diz-me logo "é tão óbvio de quem os meus pais gostam mais" mas também acrescentou "mas eu também, de eles os dois, sei muito bem quem prefiro, basta só imaginar a morte de um, ou a morte de outro". Claro que os pais que têm mais que um filho dizem sempre que gostam deles por igual, é "politicamente correto", se calhar até se querem convencer mesmo disso, mas existem sempre preferências, muitas vezes mais claras para quem vê de fora. E eu estou em crer que é assim com tudo.
Quanto à questão da adoção, seja em África ou noutro qualquer país do mundo, acho que não deveria ser permitido que nenhuma criança nascesse sem pais ainda que adotivos. Portugal deu um pulo civilizacional com o casamento homossexual, mas perdeu-se a oportunidade de permitir que mais crianças pudessem ser adotadas, retirando-as de instituições, que muitas vezes em vez de as proteger, as agridem e marcam negativamente para o resto da vida.
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