domingo, 22 de setembro de 2013

Lobolo

(Este texto está escrito com base nos testemunhos de moçambicanos e leituras aleatórias que efectuei ao longo dos anos. Não é um texto cientifico. Acima de tudo, expõe a minha visão assumidamente parcial sobre o tema.)

O Lobolo é uma prática ancestral com um peso muito grande na sociedade moçambicana até aos dias de hoje.
Do ponto de vista cultural pode ser comparado ao nosso antigo dote. Do ponto de vista puro e duro trata-se de uma compra: a família do noivo compra uma mulher mediante um pagamento em numero e/ou género à sua família.
Antigamente esse pagamento era feito como forma de agradecimento à familia da noiva por tê-la criado, educado e preparado para que fora uma boa mãe e esposa. Sobretudo, era muito apreciado (e bem pago) o facto de a noiva casar virgem. Porém, o lobolo, era acima de tudo, uma recompensa à família da noiva pela perda de uma filha (veja-se que o significado não era meramente afectivo, senão prático. Perder uma filha significava perder mão-de-obra doméstica).

Para nós, europeus, é uma prática sexista e retrógada. Contudo, para os moçambicanos é uma prática actual. Aqueles que não lobolam a mulher têm sempre uma dívida para com a família dela. A mulher que não é lobolada é uma mulher sem direitos.

Conheci dois casos de lobolos tardios e dois casos de lobolos feitos nos primeiros anos de vida em comum. Nos lobolos tardios, ambos casais mostraram as fotos do casamento e rituais de lobolo com muito orgulho. As senhoras, mães de não sei quantos filhos e avós de outros tantos, iam vestidas de véu e grinalda. Os senhores de fraque. Vi fotos deles a pegarem ao colo delas e a partirem o bolo de noivos com todo o romanticismo e tradiciolismo inerente a este acto (braços entrecruzados e um dá um pouco de bolo ao outro). Os “vovôs-noivos” falavam da cerimónia e demonstravam certo alívio por terem podido pagar a “dívida” que haviam contraído várias décadas antes com a sua família política. As “vovós-noivas” falavam do caso ainda com mais alívio porque as mulheres que não são loboladas, assim como os seus descendentes, não têm qualquer direito sobre o património familiar. Em caso de viuvez, mesmo que tenham filhos pequenos ou dependentes, a família do homem pode exigir que estas abandonem a casa familiar e todos os bens. A mulher lobolada perde o direito aos filhos. Já os filhos da mulher não lobolada “pertencem” ao tio materno. Como normalmente as mulheres moçambicanas são totalmente dependentes dos maridos, quando se deparam com esta situação extrema, são obrigadas a aceitar certas imposições bárbaras. A mais comum é a obrigação de servirem e manterem relações sexuais com um dos irmãos do defundo marido, ou seja, com o cunhado. O lobolo é também a justificação para mal tratar psicológicamente a mulher  “eu paguei por ti portanto vais fazer o que eu quiser”, ou o homem “tu não me lobolaste portanto não tens nada a ver com a minha vida”.

O lobolo é um ritual patriarcal, ou seja, é um negócio entre duas famílias que são representadas pelos homens das mesmas. A família do noivo dirige-se, pois, à casa da noiva. É-lhe entregue uma lista com algumas exigências. Normalmente a noiva, os pais delas e os avós deverão ser obsequiados com alguma coisa. Antigamente, no tempo dos casamentos arranjandos, estas listas eram de extrema importância e discutiam-se em plenário familiar. Nos tempos modernos todos os pedidos são aceites porque já foram acordados previamente pelos próprios noivos.
De acordo com o ritual, se a família do noivo aceitar, cerca de um mês depois da primeira visita, voltam a casa da noiva com os presentes. E depois vem a festa rija. Entre os presentes, é de bom tom oferecer uma bengala, roupa e sapatos ao pai, um conjunto completo à mãe, capulanas a dar com pau e utensílios de cozinha.

Existem mais uma série de detalhes que não domino de todo. Por exemplo, nos dias que antecedem a cerimónia religiosa, a noiva é totalmente coberta com duas capulanas unidas por uma barra de linho e é acomodada no chão, em cima de uma esteira. A família do noivo atira dinheiro e, quando a família da noiva e/ou a noiva, consideram que é suficiente, a noiva destapa-se. Antigamente, em muitos casos, o noivo não via a noiva até este momento. Imagino que alguns devem ter apanhado grandes sustos.

Em Moçambique a violência doméstica ainda é o pão nosso de cada dia. Existem uma série de observatórios, gabinetes, comités etc...de apoio e protecção à mulher mas na prática a mulher ainda é muito vulnerável, o elo mais fraco. A própria cultura incentiva ao mal trato. O homem que não bate na mulher “não é homem”. E quando bate, se a mulher decide apresentar queixa às autoridades é “porque não ama” esse homem de verdade. Existe um ciclo vicioso entre a cultura e a lei. No caso de a mulher ser lobolada a coisa complica-se, porque se ela decidir que não quer mais estar com o marido que a espanca, que lhe é infiel, que a contagiou com uma DST, a própria família dela apresenta-lhe uma série de entraves. Embora a lei já contemple situações como estas, o peso da cultura fala mais alto. Neste caso, dita que se a mulher decidir sair de casa e terminar com o casamento, a sua família terá de devolver o valor do lobolo. Ora, a família não está disposta a isso e pressiona a mulher a “aguentar” e manter tudo como até então.

Existe também o detalhe da multa. Em caso de a mulher lobolada já ter filhos do homem ele terá de pagar um extra por cada filho.

Nos tempos modernos o sentido do lobolo foi bastante deturpado. Da lista de exigências fazem parte muitas frivolidades. De qualquer forma, indaguei por aqui e acoli qual a opinião das mulheres sobre o assunto e se de alguma forma se sentiam tratadas pelas familias como “mercadoria”. A maioria reconhece que o lobolo tem essa faceta mas que o peso da tradição e o orgulho de o seguir à risca é mais forte que qualquer outro factor.

Tudo isto que acabei de contar faz parte da História da cultura moçambicana. Deixo-vos a foto de uma lista de lobolo elaborada há dois meses à qual tive acesso (mas que não fui expressamente autorizada a publicar. Bandidagem!) 

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