domingo, 31 de março de 2013

The Legends Never Die



Tenho a certeza que já falei dele algures neste blog porque falar de mim sem falar dele é como pôr rímel sem ter pestanas, uma coisa descabida. Talvez por pudor ou por receio de ferir susceptibilidades alheias, nunca me dediquei a escrever exactamente o que penso dele mas, foi sobretudo por achar que há pessoas a quem as palavras para os homenagear ainda não foram inventadas, que eu nunca escrevi sobre o meu pai.

Não pensem que aqui no hemisfério Sul o calendário não marca igualmente o dia 19 de Março como o dia do Pai e que só agora é que me dou conta que se me escapou. Acontece que eu não escrevo estas linhas impulsionada por uma data que cariz comercial e religioso. Escrevo porque há dias que se confundem com os anos, as horas e os minutos que passaram (acho que se me concentrar consigo saber exactamente quantos foram) desde aquela Segunda-feira à noite em que ele me disse “Chita, não vens dar um beijinho ao papá?”. Eu fui e dei-lhe um beijinho e quisera ter dados muitos mais e ruidosos mas esse foi o último. No dia seguinte ele amanheceu morto ( ou anoiteceu). Eu tinha só 13 anos e o meu Sol deixou de me aquecer mas nunca deixei que a minha vida fosse corrompida por esse acontecimento. Encontrei a força suficiente para conseguir ver o copo meio cheio, sempre. Não me tornei toxicodependente, nem gótica, nem chiflada, no entanto nunca mais me pude sentir igual à outra gente. Lembro-me de estar distante da maioria das pessoas mesmo quando estava alegremente entre todos a viver a minha vida de adolescente, jovem e, mais tarde, universitária etc...Era como se a vida me tivesse “oferecido” a minha dose de consciência cedo demais. Aos 13 anos troquei as barbies pela saudade e isso fez-me desenvolver o sexto sentido. Por isso fiz sempre aquilo que me apeteceu e, por isso, nalguns periodos as pessoas aborreciam-me tanto porque me contavam aquilo que eu já sabia há muito tempo mesmo sem o ter vivido. Devia parecer-lhes um bocado freaky e, talvez por isso, a minha espontanêadade fosse, não raras vezes, confundida com ingeniudade ou desonrientação.

O que muitos não sabiam era que a vida já me tinha arrancado um pedaço grande do meu coração. Só me restava o optimismo misturado com uma melancolia crónica e, assim sendo, era melhor que eu me apresentasse sem grandes artíficos e maquilhagens.

Bom, não escrevo isto para me lamentar: Nunca me senti uma coitadinha. O meu pai era tão gigante que o seu próprio desaparecimento se converteu numa das maiores lições de vida que alguém me poderia ter dado. Antes de morrer era o meu pai e o meu amigo. Depois converteu-se no meu professor. Porque sair assim de mansinho, com botinhas de lã, sem avisar só faz sentido se for para que os que ficam aprendam alguma coisa.

Ele não vivia em Portugal e na altura as comunicações ainda não estavam tão desenvolvidas como agora. Uns meses antes de morrer gravou-nos (a mim e à minha irmã) uma K7 onde partilhava conosco os seus pontos de vista sob os mais diversos assuntos. Falava com tanta naturalidade sobre a necessidade de tratar a ricos e pobres da mesma maneira, da juventude saudável versus toxicodependentes, dos saltos altos nas mulheres etc...que ele próprio se confundia e dizia, em determinado momento “Ai que cabeça a minha, pensava que estavas aqui e estás  aí em Portugal...” ou então “Espera aí que vou ali ver um programa que está a dar na televisão...”.

Não quero com isto fazer a apologia da morte porque daria tudo para voltar a ouvir a gargalhada dele ( jamais ouvi uma gargalhada tão melódica) ou para voltar a ir à caça nocturna de gatos com fisgas e batatinhas novas. Também gostava das mentiras que ele me contava sobre a sua vida como promissor toureiro frustrado. Me engana que eu gosto...

Não acredito na vida depois da morte, nem na aparição dos mortes aos vivos. Acredito sim, que a alma dos nossos ente queridos existe enquanto nós nos lembrarmos deles. É uma questão de sugerência e não de transcendência.
Bom, conto-vos tudo isto porque hoje, tal como em muitas ocasiões nos ultimos anos, senti que o meu Sol me continua a aquecer. Numa dessas situações quotidianas dos nossos tempos modernos, um amigo de um amigo de um amigo contactou-me através do FB para me perguntar se eu era quem ele estava a pensar: a filha do meu pai. Respondi alegremente que sim e, em troca, recebi esta resposta:

“ ola desculpa a pergunta numa altura talvez menos propicicia, mas vi ai uma foto dum antigo amigo meu dos tempos mais selvagens,o XXXX e acho que posso partir do principio que tu es filha do falecido ze toreiro, como nos lhe chamavamos.
Conheci muito bem, durante talvez 20 anos e posso-te garantir que era uma excelente pesssoa.tinha duas coisas que o tornavam "chato" quando tomava uns copos,: os touros, que para quem de tourada nada entende,como eu, se pode tornar um tema aborrecido, e as filhas de quem falava com carinho constantemente.este ultimo tema eu na altura nao o entendia, hoje, com 2 filhas ( ) posso entender perfeitamente o que ele na altura sentia. o teu pai tinha-vos como duas deusas que adorava.
desculpa se toquei no assunto , mas nao o consegui evitar.como ja disse antes, tenho duas filhas adolescentes e hoje sei porque é que o ze toureiro era chato . hoje sei que se ele gostava de copos e de touros, isso era o que o mantinha vivo e apaixonado, mas havia duas pessoas que ele nao trocaria por nada disso e eram para ele uma paixao muito maior,imensa e insubstituivel... as paixoes verdadeiras sao como as legendas : never die”

Depois de tantos anos a tentar sobreviver à dor e à saudade e de me esforçar por encontrar o equilíbrio entre continuar a lembrar-me dele com a mesma intensidade mas, ao mesmo tempo, permitir-me alguma paz, consegui há alguns anos aceitar que a minha perda é algo com o qual terei de conviver o resto da minha vida, tal e qual uma amputação. Consegui sobretudo que a saudade dele se associe aos momentos de alegria que vivo na minha vida pessoal ou familiar, por exemplo, a existência imprescindível dos meus sobrinhos, alguma festa/reencontro familiar etc. Quando acontece algo bom não fico triste por ele já não estar cá. Limito-me a pensar “que pena que não posso partilhar com ele e que ele não possa sentir esta alegria”.
Assim, foi com enorme prazer que eu recebi a mensagem através do FB. Em vez de ficar triste, senti-me feliz pelas palavras que me foram remetidas e, porque, se alguém escreve assim do meu pai passados tantos anos é porque ele foi mesmo essa pessoa extraordinária que eu guardo no meu imaginário.
Se me fosse concedida a oportunidade de escolher outro pai, numa outra vida ( se eu acreditasse em vidas futuras) eu não hesitaria em escolhê-lo a ele uma, outra e outra vez. Acho que nunca conheci ninguém com tanta capacidade de amar só com os olhos. Além disso, não tinha qualquer pudor em dizer o quanto nos adorava e em dar-nos beijos e mimos. Conselhos também não faltavam, tão pouco me lembro de ele nos falar como se fossemos 2 cristais em risco de se quebrarem ao mínimo toque com a realidade. Falou-nos sempre como a duas pessoas e não como a objectos da sua propriedade.
Ele era um homem especial e, como o meu correspondente facebookiano bem disse, um pai apaixonado pelas suas filhas. Apesar de ter falhado no seu propósito de seguir conectado à vida deixou-nos a melhor herança que alguém pode desejar: a certeza de termos sido o bater mais forte e genuíno dentro do diamante que ele trazia no peito.
Para a posteridade ficam frases míticas tais como a que principiava cada carta “Olá queridíssimas Conchita Cintron e Verónica Maria...” ou a que ele alegremente dizia quando voltava da rua e abria a porta de casa dizendo “Olááá filharada...”

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