terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Peripécias irlandesas: Au pair

Peripécia - Segundo Aristóteles, "Peripécia é a mutação dos sucessos no contrário". Assim, poderemos considerar um acontecimento imprevisível que altera o normal rumo dos acontecimentos da acção dramática, ao contrário do que a situação até então poderia fazer esperar.

Quando escrevi este texto acabava de atravessar uma fase dificil depois de oito semanas a procurar trabalho e a sentir-me perdida e sózinha. Tentava agarrar-me à restia de criatividade que ainda tinha mas para mim  o caminho estava a ficar cada vez mais sem saídas. Ou voltava para casa sem ter conseguido nada além de uma grande frustração, ou continuava na Irlanda mas para isso teria de dar alguns retoques nos planos que havia traçado para mim.
Na vida dos imigrantes, os trabalhos de Kitchen Porter estão para os homens, como os trabalhos de babysitter estão para as mulheres, ou seja, quase o último recurso, porque além de serem mal pagos, exigem uma carga laboral muito grande e uma energia que nem o Tarzan tem. Inscrevi-me na página das Aupair na Irlanda e começaram a aparecer diferentes propostas. Era pegar ou largar. Fui contactada por várias familia e fiz uma pré-seleção de cerca de quatro delas. Por exclusão de partes, escolhi uma família no Condado de Kildare, com dois pequenos gémeos de seis meses.

Assim, no inicio de Setembro deixei Cork, fiz as malas e levei uma lista de coisas que queria fazer nos tempos livres para ganhar uns trocos extra. Depois duma brainstorming com uma amiga, cheguei à conclusão que o melhor seria procurar trabalhos como tradutora. Não ia demasiado animada porque trabalhar como babysitter. Fugia em muito ao meu objectivo inicial, mas ia de cabeça erguida, com energia para agarrar o novo projecto e, sobretudo, com um sorriso na cara porque o mundo não tinha a culpa das minhas desavenças internas.

Fui recebida por uma familia de classe média-alta (diria talvez mais alta que média), numa casa de campo deslumbrante, no meio do nada. A loja mais perto estava a cerca de meia-hora a pé, assim como a única farmácia, supermercado e estéticista num raio de não sei quantos kilómetros.Não me importei. Era tratada com educação, tinha longas conversas com a mãe dos amorosos gémeos e toda a comunicação era feita em inglês o que me ajudou bastante. Como a mãe é professora de Educação Física, magrérrima mas convencida de estar à beira da obesidade mórbida (confesso que me inspirei nela para escrever este texto), toda a comida era biológia, home-made, todos os dias fazíamos caminhadas de passo rápido pelos magníficos campos irlandeses e depois de jantar uma sessão de Insanity. Era óptimo e estava feliz com a minha rotina saudável. As noites eram terminadas num quarto com decoração de revista e com uma casa-de-banho privada enorme.

Até aqui tudo óptimo mas, assim que cheguei percebi que o meu velho computador se negava a conectar à wireless da casa, portanto os planos de trabalhar como tradutora estavam fora de questão. Assim como os planos de fazer cursos à distância, procurar trabalhos ou escrever longos e-mails aos meus amigos. Nunca se opuseram a que eu usasse o computador lá de casa ou o ipad, mas a verdade é que era dificil escrever num apple com teclado irlandês, entre outras pequenas comodidades perdidas tais como a privacidade ao fazer downloads de coisas que me enviavam por e-mail etc...Depois cada vez que me tinha de deslocar a Dublin porque a família ia passar o dia com os amigos/familiares, tinha de gastar muito dinheiro em transportes. O salário de aupair não está mal mas não é nenhuma fortuna e muito menos compatível com o standard de vida. Por fim, viver no local de trabalho não é de todo recomendável porque é um non-stop na actividade laboral, assim como na relação com os “colegas”, neste caso os pais dos gémeos.

No inicio de Outubro disse à mãe que ficaria até ao final do mês porque precisava de outros recursos financeiros. Ela não só não se opôs, como se alegrou. Acredito que para ela também tenha sido intenso passar tanto tempo sózinha com uma estranha de sotaque português, dois bebés que não a deixavam dormir à noite e um marido sumido de espírito e útil apenas nas tarefas mínimas. Depois um milagre aconteceu e fui chamada para a primeira entrevista do meu actual trabalho e, mais tarde, para a segunda entrevista.

Então, eu acho que se não tiverem uma pressão muito grande para ganharem dinheiro e se conseguirem trabalhar abstraíndo-se da relação intensa que se cria com a familia de acolhimento, aupair pode ser uma boa opção. O contacto com a cultura e a língua é total. A mim ajudou-me muito a estar mais confiante na hora de falar inglês, assim como na curiosidade que tinha sobre muitos tópicos da cultura irlandesa.  Contudo, sofri com a falta de tempo para coçar o nariz. Cuidar de dois bebés é um compromisso de 24 horas. A privacidade só existe quando há uma porta fechada. Eu só estava “livre” à noite, no meu quarto de revista e mesmo assim não era uma liberdade total. Depois, há alturas em que vemos que as crianças estão a ser mal habituadas mas não somos quem para o dizer aos pais. No meu caso, a mãe não queria ouvir os bebés a chorar. A única forma de o evitar era estando constantemente a entretê-los ou a pegar-lhes ao colo, num ciclo vicioso. Um dos gémeos era muito gordinho, robusto e adorava-me, portanto acabava sempre no meu colo e eu acabei com as costas feitas num oito. Por fim, embora a família fosse extremamente amável comigo, eu era a babysitter e imigrante. Nunca senti por parte deles qualquer hostilidade em relação a isso, mas algumas vezes vinham a casa amigos que me tratavam educadamente como a empregada. Creio que ao facto de serem preconceituosos, juntava-se o factor classe social, porque estamos a falar de pessoas de classe alta (tudo fachada, porque a mãe era muito cínica e assim que eles iam embora contava-me todos os podres e a maioria andava com os tostões mais contados que eu).

Depois, por fim, encontrei um trabalho. Meus caros, tudo nesta vida é experiência adquirida e sumada. Não desistam de ser livres nos vossos sonhos. E sonhem um sonho, detrás do outro.

"Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer..." Pedra Filosofal, Manuel Freire

cama com colchão aquecido

banhos de luxo
TO BE CONTINUED...

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