quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Peripécias irlandesas: Hostal III

Peripécia - Segundo Aristóteles, "Peripécia é a mutação dos sucessos no contrário". Assim, poderemos considerar um acontecimento imprevisível que altera o normal rumo dos acontecimentos da acção dramática, ao contrário do que a situação até então poderia fazer esperar.

Bom, não quero que fiquem a pensar que as pessoas que estão nos hostal pertencem todas a um estereotipo psicológico que varia entre o louco e pirou de vez. Muito pelo contrário, nesta minha experiência encontrei pessoas incrivelmente simpáticas e lutadoras. Partilhei quarto com mais de trinta pessoas em meia-dúzia de dias. Os cromos contam-se pelos dedos de uma mão. Todas as demais pessoas com quem me fui relacionando eram muito agradáveis. É impossível falar com toda a gente que está de passagem por um Hostal, mas hà sempre caras que se repetem porque têm os mesmo horários de refeição ou os mesmos hábitos.

O Abraham´s Hostal deixa muito a desejar em termos de instalações, mas por ser o mais barato da cidade é muito procurado para instâncias de vários dias. Foi por isso que conheci muitos jovens, sobretudo espanhóis, que estavam nas mesmas condições que eu. Tinham deixado para trás os seus países e traziam na bagagem formações topo de gama e vontade de fugir ao desemprego. Os espanhóis vêm sempre dispostos a trabalhar em qualquer coisa porque sabem à partida que o nível básico de Inglês que têm não lhes permite inicialmente sonhar muito além dos típicos trabalhos não-qualificados. Era frustrante encontrar-nos cada final de tarde na cozinha, cada um sumido no seu silêncio. Quando abriamos a boca era para contar onde tínhamos ido distribuir CV´s. Cada dia uma nova ilusão que se acabava por se romper semanas depois. Eu estive assim demasiado tempo para saber o quão dificil é e compreendo aquela sensação de desespero e de inutilidade que se vai instalando em nós, quando já buscámos em todas as partes e não encontrámos um emprego que nos devolva alguma dignidade. O dinheiro vai diminuindo na conta e o caminho começa a ser tão estreito que o ar parece que rareia. E o mais frustrante é que o dia que encontramos um trabalho não podemos acreditar. Achamos que a qualquer momento nos vão ligar a dizer “desculpe mas foi engano. Você não vale para este posto, nem para nenhum outro. Vamos dá-lo a outro desgraçado”

Foi, pois, com grande alegria, que as primeiras pessoas a saberem que tinha encontrado um trabalho, foram os companheiros de Hostal. Foi uma coincidência. Eu estava na cozinha metida comigo mesma e com a cara quase dentro do ecrã. À minha volta estavam três ou quatro caras conhecidas igualmente sumidas. Ligaram-me para dizer que o posto era meu e quando desliguei fiquei abobada. Levantei a vista  e estavam todos a olhar para mim. Foi então que lhes disse “Tengo trabajo, I got a job” e todos aplaudiram.  Dias antes tinha estado num hotel em Madrid com muito mais estrelas que o Abraham´s (que em caso de ter estrelas devem ser cadentes) e tinha sentido um vazio e uma solidão muito maiores que a familiaridade que sentia no Hostal.

Não sou hipócrita e sei perfeitamente que não quero voltar a repetir a experiência. Adoro chegar à minha casa e encontrar tudo limpo e organizado. Gosto de ter os meus shampôos todos dispostos na banheira, sem estarem encafuados numa bolsinha. Se me apetece ando descalça e nem por isso apanho pé-de-atleta. Se desaparecer alguma coisa é porque a mudei de lugar e não me lembro, e não porque alguém a roubou. Mesmo assim, vejo que a vida está cheia de malditos atalhos que nos vão maltratando e deixando marcas. Umas esquecem-se rápidamente, outras nem por isso. Uns arriscamos e vivemos mais. Outros nem por isso. Talvez aos olhos desses outros, estes relatos das minhas peripécias não passem de loucuras, de perdas de tempo, de coisas sem utilidade. Mas há sempre alguém, algum livro, alguma paisagem nos quais tropeçamos que fazem com que cada segundo destes “tempos perdidos” valham a pena. Que justificam o sofrimento, a solidão e o rancor que tantas vezes sentimos quando escolhemos viver fora da “zona verde”.

Da experiência de viver num Hostal, trago além de todas estas histórias e outras tantas às quais vos poupei, três pessoas: o Manel e o Pedro, dois portugueses da margem Sul e a Francis, uma canadiana de 75 anos que ainda viaja de mochila.
Eu já tinha feito o check-out e pensava que já não voltaria a ver essa Lady tão simpática e jovem (que há noite se transformava numa máquina de roncar com direito a diferentes ritmos e sinfonias). Eis que numa dessas casualidades que a vida tem a voltei a encontrar nas ruas de Dublin. Fomos caminhar e almoçar juntas e falámos muito sobre muitos assuntos: livros, viagens, família etc...Ela dizia que tínhamos o mesmo sentido de humor. Foi-me levar ao meu novo Hostal e na despedida disse-me algo que me marcou muito e fez com que me emocionasse. Disse-me que nunca mais me esqueceria. Garanto-vos que se alguém jovem me dissesse o mesmo não teria um impacto tão grande. Que uma pessoa de 75 anos, depois de ter vivido tanto, viajado por aí e conhecido tanta gente me diga isso é porque realmente houve algo que fez com que eu me tornasse especial para ela.  

TO BE CONTINUED...

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