quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Peripécias irlandesas: Hostal I

Peripécia - Segundo Aristóteles, "Peripécia é a mutação dos sucessos no contrário". Assim, poderemos considerar um acontecimento imprevisível que altera o normal rumo dos acontecimentos da acção dramática, ao contrário do que a situação até então poderia fazer esperar.

Depois da experiência Aupair chegou a vez de dar passo a um novo e não menos surpreendente capítulo da minha vida: viver num Hostal.

Talvez viver não seja bem o termo, porque o objectivo inicial era hospedar-me apenas por uns dias enquanto procurava trabalho em Dublin e ia e voltava de Madrid. Tinha esperança que me dessem o posto de trabalho que ocupo actualmente, mas confesso que estava já tão céptica em relação a tudo que nem criei demasiadas expectativas. Só queria encontrar um trabalho, ganhar dinheiro, pagar as minhas contas e voltar a viver de forma independente. Para isso precisava estar no centro de Dublin e como não conheço ninguém nesta cidade, procurei um hostal cêntrico e o mais barato possível. Abraham´s Hostal, numa paralela da O´Connell Street foi o escolhido. Além de ser barato, incluí matabicho e no tripadvisor tinha críticas positivas. Embora a limpeza tivesse uma cotação baixa, os hóspedes pareciam excepcionalmente satisfeitos com o staff e com a organização do hostal (ou foram pagos para cotizarem ou não calharam irremediávelmente com a cabra ruiva da recepção).

Descrever como uma experiência negativa não seria de todo justo mas...
É extremamente incómodo partilhar um quarto minúsculo com seis ou oito raparigas. Umas que roncam, outras estão tão animadas com a viagem que  em vez de se dedicarem a dormir, dedicam-se a dar voltas no beliche da loja dos trezentos e a desgraçada que está na cama de baixo (ou de cima) tem de levar com aquele chiar suplicante toda a puta santa noite. Depois os W.C. partilhados são óptimos museus de memória de cabelos que estiveram nas cabeças de alguém e que já não estão...e há sempre algum objecto pessoal que desaparece e fica aquele ambiente estranho num espaço de quatro metros quadrados e apinhado de beliches. Quase se ouve aquela gota do suor nervosa a escorrer na espinha.

No primeiro dia é divertido porque cada pessoa que chega é de um país diferente. No meu primeiro dia ainda nem tinha os dois pés dentro do quarto e já tinha uma miuda asiática a perguntar-me “Whele you come flom?”. Sorri e respondi educadamente. Calamba, que culiosidade, a tipa ia dileitinha a Lisboa no dia a seguil. Claro, que lhe escrevi uma longa lista de locais recomendáveis, entre os quais o Martim Moniz (ihihihihihhi). Mas depois, invariávelmente começa um desfiladeiro de perguntas standard e das cromas do costume (eu sei que para algumas eu também devo ser croma).

Croma 1: Na cama em frente à minha estava uma miuda de cabelos compridos, pesadona sem ser gorda, que ora lia um livro, ora falava em inglês com sotaque francês. Perguntou-me de onde era e eu devolvi a pergunta. Quando me disse Israel respondi com um sorriso algo forçado “Ah, que fixe! Nunca conheci ninguém de Israel” (precisamente eu andava metida numas discussões pseudointelectuais pró-palestina). Contou-me que cada dois anos o avô convida toda a família para uma larga viagem e no ano anterior tinham estado em Portugal. Eu falei-lhe no meu adorado filme “ A viagem do director” e já não sei em que momento é que a conversa descambou para o tema óbvio. Bom, nesse momento a miuda de cabelos compridos foi embora e deu passo à croma na sua essência. Nalguns argumentos tinha razão. Óbviamente que os dirigentes palestinianos não são inocentes mas, a tipa estava super orgulhosa de ter feito a tropa, da mesma forma que as miudas portuguesas estão orgulhosas de ir cinema com as amigas num Sábado à tarde. Reconheceu que isso lhe trouxe consequência psicológicas irreparáveis e admitiu que a tropa não prepara os israelistas para um eventual ataque bélico à escala mundial, senão exclusivamente para combater os palestinianos. Os exercícios práticos são passar a “fronteira” sem ser vistos, nem mortos pelos palestinianos. Depois começou o discurso anti-islâmico que a meu ver não deveria ser permitido, assim como não o é o discurso anti-semita. Quando eu já desejava que se abrisse um buraco no chão e me engolisse, eis que se abriu a porta da casa-de-banho onde uma das hóspedes tinha estado emergida num banho sem fim qual Cleópatra, e foi assim que me consegui escapulir a uma conversa que me era cada vez menos grata...Só para concluir, antes que a casa-de-banho me engolisse, a croma estava deitada de lado na cama, mesmo em frente a mim, com a cabeça apoiada na mão e com um olhar cada vez mais distante e repetia que estava muito orgulhosa de ser israelista e poder pertencer a um país que tem capacidade de se defender dos mulçumanos e que a Europa estava a cometer um erro terrível ao deixar entrar toda essa “gentalha” ao mesmo tempo que abolia o serviço militar obrigatório...E eu ouvia aquilo e sentia-me cada vez mais orgulhosa de ser europeia.

Abraham´s Hostal

TO BE CONTINUED...

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