sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A vendedora da Macaneta e o cessar-fogo entre a Renamo e a Frelimo

A praia da Macaneta, em Moçambique, tem uns bons kilómetros de areal. A água, não sendo azul coral, é de fazer inveja a muitas praias de resort turístico. Embora esteja nas águas do Índico, o mar ainda que quentinho, pode ficar bravo.
A Macaneta é o paraíso dos expatriados, aka, mulungos a viverem em Moçambique. Aos fins-de-semana e nos feriados, há longas filas que esperam pelo velhinho ferry. Para os entretantos há um par de agradáveis restaurantes montados à sombra de folhas de palmeira onde são servidos pedaços de paraíso em forma de peixe fresco e grelhado. Isso sim, o serviço é ao melhor estilo moçambicano: sorrisos grandes e bonitos e duas horas de espera para comer uma espetada. Afinal quem se importa com o tempo em África, senão os brancos? Desesperam ao longo dessas horas de espera, abanam a cabeça, pedem o livro de reclamações, tornam-se rezingões, prometem falar mal do serviço mas...depois voltam sempre porque, a final de contas, vale a pena esperar pelo produto final como em nenhuma outra parte.

Na única vez que estive na Macaneta passei 99,9% dentro de água como um peixe voador aos pinotes. O restante tempo -0,01%- estiquei-me no areal e fiquei com um escaldão horroroso. África não é para meninos!
Num desses poucos momentos em que estive no areal, uma vendedora de peixe que ia a passar pediu-me ajuda para tirar o alguidar da cabeça porque precisava descansar um pouco. Eu acudi muito empolgada e quase parti os pulsos quando apanhei a carga. O alguidar pesava uns bons dez kilos. Estava cheio de peixe fresquinho e crostáceos.
A vendedora ficou sentada na areia a descansar cerca de vinte minutos e depois voltou a pedir ajudar para pôr o alguidar na cabeça. Tinha percorrido a totalidade da praia para entregar o peixe fresco nos restaurantes. Essa era a realidade diária daquela mulher: percorrer kilómetros de areal com um alguidar pesado na cabeça. Em casa teria um marido bêbado e tantos filhos quanto a impossibilidade dos alimentar a todos. Quantas vezes não teria acartado um filho às costas, enquanto caminhava com o alguidar à cabeça? E quantas mulheres não haverá em Moçambique nas mesmas condições? E quantas dessas mulheres, que foram mortas nos últimos meses no centro do país nos ataques proliferados entre a Renamo e a Frelimo, não estariam a passar por casualidade com um alguidar na cabeça, quando levaram um tiro e não são sequer um número porque, de acordo com a comunicação social “...a crise político-militar, que provocou um número indeterminado de mortos e de feridos..."?

[Trouxa das oito couves
D. Josefina Amélia dos Prazeres Santos Tembe
viajando no tejadilho do calhambeque "Chapa 100"
ia à cidade de Maputo vender
uma trouxa de 8 couves
quando aquele frufru
da rajada não deixou.
José Craveirinha]


Por isso, quando hoje abri o jornal digital e li sobre o “sentido” abraço entre o Gebuza e o Dhlakama e os vi caminhar de mãos dadas como um apaixonado casal de namorados, não pude conter a raiva dentro de mim e reflectir sobre a irresponsabilidade deste momento que eles consideram cheio de simbolismo. E mais não digo porque me faltam as palavras e me dói a inteligência por saber que assim que as eleições terminarem, as vendedoras de alguidar na cabeça vão voltar a cair como “números indeterminados”.

Praia da Macaneta
Fonte: 
radified.com

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