José Craveirinha, poeta maior da literatura moçambicana e
primeiro africano a ganhar o prémio Camões (1992) cresceu no mesmo bairro onde
o Eusébio deu os primeiros toques na bola, no periférico Mafalala, Maputo.
Nasceu em 1922 quando a antiga Lourenço Marques ainda nem
era bem uma cidade, senão o embrião da metrópole em que se começou a converter
anos mais tarde. Fez da escrita a sua vida e o meio mais-que-perfeito para
denunciar abusos contra os Direitos Humanos.
Já se sabe que a ignorância é a namoradinha do
preconceito. Devo admitir que eu era, estava e estou ainda muito ignorante em
relação à obra do Craveirinha. Parti da minha ideia preconcebida que ele havia
escrito essencialmente contra a ocupação colonial dos portugueses e a favor da
construção da identidade moçambicana. Não sendo de todo errado, descobri graças
a um livro emprestado, que o Craveirinha se deu ao trabalho de fazer as coisas
tão bem feitas, que aquele que leia alguns dos seus poemas mas que desconheça
quem é e de onde vem o poeta, pensará que ele está a descrever uma situação
típica na Faixa de Gaza, na Síria, no Afeganistão e em tantos outros focos
bélicos.
Quero com isto dizer que dei um pontapé na ignorância. Em
troca ganhei o prazer da companhia de um poeta que é de Moçambique, dos
moçambicanos e de todas as pessoas. Um defensor dos Direitos Humanos. E se não
fosse assim ora digam-me lá porque é que ele teria escrito coisas como estas:
Cancioneiro de
Xiguevengos
Mãe e filha partiram de Chidenguele
com todos os quesitos cumpridos
mais dois: outra filha e uma irmã raptadas
Três semanas antes tinham pedido ao Grupo Dinamizador
salvos-condutos de viagem à vizinha localidade
para evitar problemas no “control”
Com todos os seus requisitos em ordem
antes da curva do segundo canhoeiro
mãe e filha foram violadas.
Depois a récua de xiguevengos
foi antologiando as duas
no versátil cancioneiro
das catanadas
Outra beleza
Uns exibem insólitos perfis
de outra beleza
maquilhada
no mato.
Ou
do viés
ou de frente
perfeitos modelos de caveira
desfilam sem nariz.
O Seio
Mamana
amamentando
vale a pena sobreviver
ao holocausto da horda?
Ela
a olhar
os cães devorando
sua carne do seio ampuntado?
João Matangulana
Refugiado na emergência do volante
João Matangulana súbito conseguiu
Reforma de condutor
Há 35 anos
Encartado
No paradeiro do emboscado Mercedes Benz
A família identificou João Matangulana
Pela meia chapa da matrícula
Apanhada no entulho
Propaganda
Era tudo falso.
Tudo propaganda do inimigo.
Cabala infame.
No corpo intacto não se notava
Nenhum sinal de tortura
Nem qualquer espécie de sevícia.
Só...
Cabeça reclinada na areia
Ele repousava degolado.
José Craveirinha 1922-2003 |
2 comentários:
Adoro esta obra, um genero misto que mistura a tragédia e a comédia numa sensura as barbaridades da guerra civil que assolou moçambique durante 16 aaanos.uma
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