quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Peripécias irlandesas: o desfecho

Peripécia - Segundo Aristóteles, "Peripécia é a mutação dos sucessos no contrário". Assim, poderemos considerar um acontecimento imprevisível que altera o normal rumo dos acontecimentos da acção dramática, ao contrário do que a situação até então poderia fazer esperar.

É sempre assim! Quando a dor de dentes já passou a primeira coisa que fazemos é “esquecermo-nos” de ir ao dentista. Já passaram dois meses desde a ultima vez que vos escrevi sobre as peripécias mais marcantes na Irlanda. Creio que já é hora de saberem o que aconteceu depois daquele telefonema. Para mim foi óptimo voltar a reler as dificuldades pelas quais passei porque, agora que voltei a ter estabilidade, como qualquer comum dos mortais, já me começo a queixar da vida rotinária. Por vezes é bom recordar os momentos dificéis para poder saborear com maior deleite as coisas boas que me vão acontecendo. E não dúvidem que a vida não é mais do que a louca perseguição da felicidade. Por isso somos tão inconformados, porque andamos sempre à procura daquela adrenalina que só o prazer em estado puro, i.e, a felicidade, nos proporciona. Amén!

Depois daquele telefonema tive cerca de quinze dias para orientar a minha vida em Dublin. Foi complicado tendo em conta que não conheço cá ninguém que me pudesse indicar as melhores zonas para alugar casa, dicas e truques locais. Sabia de antemão que alugar sózinha seria impossível porque os senhorios requerem cartas de referências de tudo e mais alguma coisa, além da típica documentação que eu nem sequer tinha (NIF, conta bancária etc...). Sabia também que partilhar casa requer um ritual de castings dificil já que existe demasiada procura para tão pouca oferta. Assim, um quarto para alugar a preços exurbitantes pode ser visitado por cerca de 15 a 20 pessoas que são sujeitas a interrogatórios pelos demais ocupantes do apartamento. No fim, ganha o que pagar primeiro ou o que conseguir impressionar mais. Eu tinha ainda o tempo limitado porque tinha de ir a Lisboa buscar a minha roupa de escritório. As casas que via nas páginas de anúncios pareciam-me velhas, sujas e caras e consegui  fazer uma triagem de cerca de 5 apartamentos dos quais só visitei dois. Estava já a começar a fazer-me à ideia de viver o primeiro mês num Hostal para poder procurar com calma quando soube que tinha sido aceite em ambos apartamentos que tinha visitado. No primeiro tive uma química intelectual espectacular com o dono, um irlandês chamado Gino em homenagem aos cantores de ópera italianos. Tinha a casa decorada com artigos adquiridos em viagens por todo o mundo e tinha uma alma limpa, aventureira e descontraída. Tão descontraída que a casa-de-banho comum estava suja. E eu pensei “se está assim nos dias em que vêm pessoas ver a casa, como não estará nos restantes dias?”. O segundo era um beto yuppie. O apartamento era limpo, novo, com casa-de-banho privada, um quarto enorme com cama King Size só para mim e a dez minutos a pé do escritório. É onde vivo há três meses. Lamentarei para sempre não ter escolhido o Gino mas ter um W.C. só para mim faz com que a vida numa casa partilhada seja muito mais leve e sustentável.

Trabalho numa multinacional de origem alemã com cerca de seiscentos trabalhadores. Entre todos falamos cinquenta e seis línguas e acredito que haverá perto duma centena de nacionalidades. É incrível. É como trabalhar na ONU mas sem ter de levar com as mentiras “do mundo melhor”. As perspectivas de crescimento são grandes (embora limitadas) e o cuidado com que os trabalhadores são tratados são factores que eu jamais tinha visto. Não existem hierarquias. As equipas dividem-se por sub-equipas. Existem pessoas de referência dentro de cada sub-equipa mas cada um é responsável pelo seu trabalho. Não faz falta um chefe para eu saber que tenho de fazer isto ou aquilo. A própria rotina diária me faz sentir responsável pelo meu trabalho. Eu sei que se não fizer, os meus colegas de equipa dar-se-ão conta das minhas faltas. O ambiente é descontraído e cada um aporta algo de novo e rico todos os dias. Desempenho uma função para a qual não me preparei académicamente e que não dá especial prazer mas ir trabalhar de manhã não é um esforço.

Financeiramente a Irlanda está a mil anos-luz de Portugal. A empresa tem montes de portugueses, que desempenham aqui num país cheio de frio e escuridão, tarefas que podiam perfeitamente desempenhar em Portugal mas pelas quais seriam pelos menos duas vezes mais mal pagos e teriam mais exigências a nivéis de esforço e trabalho. O mercado tem muitas ofertas portanto quem perde um trabalho à partida encontra outro rápidamente. A equação é, pois, muito fácil. A maioria acaba por ficar “um ano mais” até que ficam a vida toda.

Mesmo assim, a Irlanda não é o melhor país para viver porque o preço das casas e transportes não acompanha o valor dos salários. Quem está acompanhado, em familia etc...talvez não sinta tanto porque as despesas acabam por ser partilhadas e os bens de consumo básico (alimentação higiene) são extremamente baratos e de alta qualidade. Porém, quem é solteiro só fica com a vida resolvida a trabalhar na Irlanda se tiver uma dedicação exclusiva ao trabalho e abdicar de gastar em qualquer extra.

Depois está a questão da socialização. Jamais em toda a minha vida tinha tido problemas para fazer amigos. Na Irlanda garanto-vos que é tarefa árdua. Só muita força de vontade e sorte faz com que se tropece numa ou noutra pessoa. Eu estou há quase quatro meses em Dublin e não tropecei em práticamente ninguém. O tempo não motiva porque está sempre de noite, a fazer frio, a chover ou a nevar e a minha cidade irlandesa é a cidade com o clima mais agradável em todo o país. A vida é sempre mais bonita em companhia e por isso mesmo não desisto. Tento sempre procurar uma auto-motivação para sair e descobrir novos lugares, embora esteja a 0,0001% daquilo que fui. Ao fim de três meses em Madrid, Maputo ou Skopje já conhecia todos os cantos dignos duma visita. Aqui nem sequer sei quais são as ruas principais.

Eu vejo sempre o copo meio cheio, sempre sempre. É isso que me faz andar para a frente. Mas quando hoje olho para trás vejo que a Irlanda tem sido o país mais dificil que aterrar. Estar a ponto de ser “expulsa” dum autocarro na Bosnia, no meio dumas montanhas cheias de minas herdadas da guerra dos Balcãs não é nada comparado com a dureza da Irlanda. Ser abordada pela polícia moçambicana é papas de açorda- Talvez seja porque a Irlanda encerra (espero eu) o periodo mais negro da minha vida, talvez seja porque este clima não é mesmo para meninos, o certo é que desta vez não vos vou contar histórias com finais felizes.

Mesmo assim não me arrependo em nenhum momento de ter vindo para cá. Mudaria algumas coisas tais como aqueles primeiros meses em Cork à espera dum milagre laboral. Tinha de ter agido mais rápido. 
A Irlanda devolveu-me a minha dignidade laboral, o meu espírito independente e senhor dono do meu nariz. Agora posso sonhar outra vez e concretizar alguns desses sonhos que precisam de um bom background financeiro (A-F-R-I-C-A). Em Portugal estaria com a cabeça baixa, a queixar-me de tudo. Não, definitivamente o meu lugar não é o meu país. Bem dita a hora que aproveitei o último fôlego que me restava, fiz as malas e parti outra vez.

Contudo e, já para concluir, eu vim à procura dum balanço entre pessoal e profissional mas a minha balança estragou-se. Foi num súbtil momento que eu agora já consigo mais ou menos identificar. Não posso forçar a reparação embora deseje muito encontrar o equilibrio. Tenho 336 dias (Janeiro  já passou) para dar a mão à palmatória à Irlanda. Semanas e semanas de oportunidades que eu tenho para dar a este país verde e bonito mas também é verdade que só se vive uma vez. Quando esta quantidade de dias chegar ao fim, se a balança continuar avariada, não estranhem se encontrarem no parte superior deste blog um novo separador com nome de país ou cidade. Porque as peripécias são para ser vividas e não para roubarem brilhos no olhar...

Desejo-vos,pois, uma vida a abarrotar de peripécias.

Rio Liffey Dezembro de 2014

Vista parcial de Dublin desde o ponto mais alto da cidade





2 comentários:

debibu disse...

Gostei. Irei tentar visitar-te, quem sabe ainda este ano. Assim podemos percorrer as ruas escuras e sentir o vento de Dublin enquanto matas saudades de Portugal. Levo pasteis de nata ou se preferires bolas de berlim.

Ofélia Queirós disse...

Estou aqui à vossa espera. Venham depressa que eu não vou andar aqui pelo norte muitos anos :) Beijinhos