Quando a coisa se complica gosto de acalmar os ânimos com uma sessão de yoga facial :)
domingo, 29 de setembro de 2013
quinta-feira, 26 de setembro de 2013
É fácil criticar
Dizer da boca para fora “gosto” ou “não gosto” é
muito mais fácil do que sentir cá dentro a evolução de um sentimento positivo
ou negativo, sobretudo, em determinados contextos, já por si “especiais”.
Para
mim, à primeira vista, gosto de todas as meninas do orfanato. À segunda vista
já não é bem assim. Com o convívio fui-me dando conta que algumas meninas não
as gostaria de ter para mim, nem oferecidas ou recheadas com molho de
chocolate.
Em
Moçambique conheci pessoas extraordinárias mas, também, percebi que a cultura
da necessidade cria muitos “bandidos”. É dificil confiar a 100% nas pessoas,
por muito queridas que sejam. E isto aplica-se a um rango dos 0 aos 100 anos.
De trás de tudo isto está, como não poderia deixar de ser, o peso dos 500 anos
de escravatura: “O branco não é de confiança mas tem dinheiro, portanto vamos
aproveitar”. E esta maneira de ser é transversal a diferentes contextos e
situações. Aqui no orfanato, as meninas também fazem “bandidagens” com o
carinho e com a atenção.
Do
meu ingénuo estereotipo dum orfanato faziam parte alguns conceitos muito
cor-de-rosa. Por exemplo, eu pensava que as meninas não eram invejosas umas com
as outras. Que o facto de todas necessitarem faria com que fossem compreensivas
e, inclusivé, se alegrassem quando uma tivesse algo mais e estivesse disposta a
partilhar. Não só são invejosas, como fazem trinta por uma linha para
conseguirem manipular a atenção daqueles que chegam vindos de fora.
Também me deixavam louca (e ainda deixam) a
indisciplina na sala de aula e a falta de concentração. Mesmo as meninas que no
pátio são extremamente bem educadas, na sala de aula tornam-se feras. Mas o que mais me intrigava ao início era a
capacidade nata para esquecerem tudo de um dia para o outro. Uma menina que num
dia se porta bem, acerta as contas todas, as letras, as sílabas etc...no dia
seguinte é bem provável que não saiba nada. Como se durante a noite a sua mente
tivesse sido assolada por um vendaval que varreu tudo. E, assim, fui
descobrindo muitas vigarices e bandidagens entre elas e comigo.
Involuntáriamente comecei a gostar mais de umas que de outras. Não deixava
transparecer os meus sentimentos, porque sou consciente do lugar onde estou.
Num orfanato todas necessitam de grandes doses de auto-estima, no entanto não
podia evitar, cá dentro do meu peito, sentir o rum-rum do meu coração, quando algumas
delas se aproximavam ou, pelo contrário, sentir certo aborrecimento quando se
aproximavam outras. Por isso, comecei este texto por dizer que é muito mais
fácil sentir certos sentimentos, em deterimento de outros.
Comecei a queixar-me às irmãs de alguns
comportamentos de algumas meninas. E foi quando me começaram a ser abertas as
portas para conhecer melhor o historial de algumas meninas. Mesmo antes de ter
acesso a essa informação, não tinha qualquer dúvida de que, para estarem aqui,
é porque a vida já tinha sido muito madrasta com elas. Nos países mais pobres
as crianças já nascem à partida condenadas e isso não é nada justo.
A F. de 12 anos é mentirosa compulsiva. Está sempre
a inventar histórias e põe uma cara de pena tão penosa que é impossível não
ficar com o coração partido ao vê-la e ouvi-la. Ao principio parecia-me que
tinha uma extrema necessidade de atenção e carinho. Justifiquei com as suas
carências as dificuldades que demonstrava com as letras. Todas as meninas e a
formadora me diziam que a F. não sabia ler. Comecei, pois, a trabalhar com ela
e a personalizar a minha forma de a ensinar. Convidei-a para vir à casa dos
hóspedes, sentava-a ao meu lado e punha-a debaixo do meu sovaco, como gosto
tanto de fazer com os meus sobrinhos. Em qualquer momento que a encontrava por
aí convidava-a para ler. Com grande desgosto percebi que a F. sabe ler
perfeitamente (com as dificuldades típicas das crianças que não têm o hábito e
leitura) e que se dedicava a fazer “teatro” para conseguir captar a minha atenção.
Seguiram-se depois uma sucessão de mentiras. Foi quando descobri que a mãe da
F. é prostituta e que a F., quando ainda vivia com a mãe, num ambiente bastante
hóstil, era utilizada como transporte de droga entre outras misérias humanas às
quais qualquer ser humano, sobretudo sendo criança, deve ser privado.
A S. e a C., ambas de 10 anos, irmãs, portam-se qual
delas pior. São umas terrivéis, autênticas crianças-furacão. Chegaram ao
orfanato há menos de um ano e quando chegaram não falavam português. Ambas têm
dificuldades para aprender e, sobretudo, não conseguem estar concentradas mais
de meio segundo. Confesso que são o tipo de crianças que não gosto de ter na
minha sala de aula porque onde estão criam confusão (atenção: não gostar de as
ter como alunas, não significa que seja menos professora com elas). Parti do
principio que vinham de um ambiente de violência e que por isso eram, elas
próprias, tão violentas e agitadas. Descobri que nas cheias de Fevereiro deste
ano a polícia as resgatou de um telhado onde, juntamento com outros vizinhos,
permaneceram bastante tempo como unica forma de sobreviverem. A desnutrição
pela qual passaram não foi o pior. O pior foi ter de ver, desde o alto, lá no
telhado, todos os cadáveres que a água arrastava. Na mesma altura perderam a
mãe e a C. quando chegou ao orfanato, além de ter muita febre, ficou duas
semanas sem falar.
A A., de 9 anos, pelo contrário é um Ás nas aulas.
Quando as outras ainda nem sequer acabaram de copiar, a A. já copiou e resolveu
os exercícios e já está a pedir mais. É maravilhoso dar-lhe aulas. Também me
pareceu sempre uma criança muito bem resolvida com a sua história. Não
demonstrava demasiada necessidade de carinho. Ao contrário das outras, que
preferem estar penduradas nos nossos pescoços, a A. prefere sempre e acima de
tudo jogar e brincar. Esta criança é uma fortaleza. Quando era pequena viu o
pai assassinar a mãe degolando-a. Nos anos que se seguiram à morte da mãe,
quando a A. brincava com a sua irmã, pegava numa caneta e encenava a morte da
mãe. Atribuo a sua boa educação e temperamento doce ao facto de estar a ser
criada por uma avó que, segundo ouvi, é uma mulher maravilhosa.
Aqui cada menina traz com ela uma carga muito
pesada. Não posso evitar gostar mais de umas que de outras, mas quem sou eu
para as criticar? Defendo que se estas crianças pudessem ser adoptadas (a lei
de adopção em Moçambique é muito fechada) e ter um lar, a pedra dura que levam
na cabeça e, às vezes, no coração, poderia ser esculpida.
terça-feira, 24 de setembro de 2013
O prazer de ensinar
Uma
infelicidade trouxe-me até ao orfanato. Como já contei aqui, vim com uma ONG
que funciona mal. O dinheiro existe para pagar bolsas de estudo de mérito
duvidoso, vinhos e casas de luxo. Tudo o resto, a verdadeira cooperação, é
fictício, segundo os modelos de gestão da pessoa que comanda essa ONG.
Depois
de meses de frustração, sem rumo, chegar ao orfanato foi o melhor que me podia
ter acontecido. Estar aqui e poder contribuir de alguma maneira para o futuro
destas crianças foi sem dúvida o ponto fulcral de toda esta experiência mas não
falo apenas de questões humanitárias. Pessoalmente descobri uma vocação que até
então desconhecia: ensinar, ser professora.
Transmitir
conhecimento dá uma sensação de poder tremenda. Saber que, através de mim e das
coisas que lhes ensino, elas no futuro terão acesso a outras oportunidades
faz-me sentir útil e capaz.
O
nivel de ensino em Moçambique é vergonhoso. Até ao 7º ano todas as crianças são
obrigadas a passar de classe. Só chumbam aquelas que não sabem mesmo nada. E o
conceito de não saber mesmo nada aqui é literal. Há jovens de 18 anos que não
sabem ler nem escrever mas sabem alguma coisinha (ainda não descobri o quê).
Essas jovens foram passando de classe até ao 7ºano e, depois, aí ficaram como estátuas,
convivendo com colegas de carteira de 11,12,13 anos e por aí fora. Poderia
desfilar um sem fim de histórias reais que ouço diáriamente contadas pelos
alunos e professores que demonstram que a escola existe para que as crianças
moçambicanas possam ir passear os livros e sejam meros números nas estatísticas
internacionais que pretendem demonstrar que Moçambique é um pais que está a
crescer.
Infelizmente,
a maioria das crianças a quem dei aulas aqui no orfanato, estão nessas
condições. Sabem nada ou muito pouco. Tentei não desistir de nenhuma, embora
algumas situações sejam desesperantes. Numa dessas “lutas” descobri que a T. de
7 anos, afinal sabe muito mais do que todos esperavam (mesmo sabendo muito
pouquinho).
A
T., foi abandonada à porta do orfanato quando tinha 3 ou 4 meses. Era um bebé e
foi o ai Jesus da casa. Infelizmente,
foi crescendo e demonstrando uma grande indiferença para com as coisas da
escola. Tanto as colegas, como as irmãs me pediam que lhe desse alguma atenção
especial. Confesso que ao principio não estava muito interessada em dar uma
atenção privilegiada a uma criança irriquieta, barulhenta, suja e
desorganizada, que estava mais interessada nas brincadeiras que nas letras.
Mesmo assim fiz um esforço e isso foi-me recompensado. Afinal a T. só precisa
de alguém que esteja ali ao lado e que a consiga manter mais de 30 segundos
concentrada.
Quando
todos descobrimos que a T. sabe escrever o nome dela foi uma enorme alegria. A
Irmã Maria nem queria acreditar.
Deixo-vos
aqui umas quantas fotos que comprovam que a T. é capaz de muitas coisa.
domingo, 22 de setembro de 2013
Lobolo
(Este texto
está escrito com base nos testemunhos de moçambicanos e leituras aleatórias que
efectuei ao longo dos anos. Não é um texto cientifico. Acima de tudo, expõe a
minha visão assumidamente parcial sobre o tema.)
O
Lobolo é uma prática ancestral com um peso muito grande na sociedade
moçambicana até aos dias de hoje.
Do
ponto de vista cultural pode ser comparado ao nosso antigo dote. Do ponto de
vista puro e duro trata-se de uma compra: a família do noivo compra uma mulher
mediante um pagamento em numero e/ou género à sua família.
Antigamente
esse pagamento era feito como forma de agradecimento à familia da noiva por
tê-la criado, educado e preparado para que fora uma boa mãe e esposa.
Sobretudo, era muito apreciado (e bem pago) o facto de a noiva casar virgem.
Porém, o lobolo, era acima de tudo, uma recompensa à família da noiva pela
perda de uma filha (veja-se que o significado não era meramente afectivo, senão
prático. Perder uma filha significava perder mão-de-obra doméstica).
Para
nós, europeus, é uma prática sexista e retrógada. Contudo, para os moçambicanos
é uma prática actual. Aqueles que não lobolam a mulher têm sempre uma dívida
para com a família dela. A mulher que não é lobolada é uma mulher sem direitos.
Conheci
dois casos de lobolos tardios e dois casos de lobolos feitos nos primeiros anos
de vida em comum. Nos
lobolos tardios, ambos casais mostraram as fotos do casamento e rituais de
lobolo com muito orgulho. As senhoras, mães de não sei quantos filhos e avós de
outros tantos, iam vestidas de véu e grinalda. Os senhores de fraque. Vi fotos
deles a pegarem ao colo delas e a partirem o bolo de noivos com todo o
romanticismo e tradiciolismo inerente a este acto (braços entrecruzados e um dá
um pouco de bolo ao outro). Os “vovôs-noivos” falavam da cerimónia e
demonstravam certo alívio por terem podido pagar a “dívida” que haviam
contraído várias décadas antes com a sua família política. As “vovós-noivas”
falavam do caso ainda com mais alívio porque as mulheres que não são loboladas,
assim como os seus descendentes, não têm qualquer direito sobre o património
familiar. Em caso de viuvez, mesmo que tenham filhos pequenos ou dependentes, a
família do homem pode exigir que estas abandonem a casa familiar e todos os
bens. A mulher lobolada perde o direito aos filhos. Já os filhos da mulher não
lobolada “pertencem” ao tio materno. Como normalmente as mulheres moçambicanas
são totalmente dependentes dos maridos, quando se deparam com esta situação
extrema, são obrigadas a aceitar certas imposições bárbaras. A mais comum é a
obrigação de servirem e manterem relações sexuais com um dos irmãos do defundo
marido, ou seja, com o cunhado. O lobolo é também a justificação para mal
tratar psicológicamente a mulher “eu
paguei por ti portanto vais fazer o que eu quiser”, ou o homem “tu não me
lobolaste portanto não tens nada a ver com a minha vida”.
O
lobolo é um ritual patriarcal, ou seja, é um negócio entre duas famílias que
são representadas pelos homens das mesmas. A família do noivo dirige-se, pois,
à casa da noiva. É-lhe entregue uma lista com algumas exigências. Normalmente a
noiva, os pais delas e os avós deverão ser obsequiados com alguma coisa.
Antigamente, no tempo dos casamentos arranjandos, estas listas eram de extrema
importância e discutiam-se em plenário familiar. Nos tempos modernos todos os
pedidos são aceites porque já foram acordados previamente pelos próprios
noivos.
De
acordo com o ritual, se a família do noivo aceitar, cerca de um mês depois da
primeira visita, voltam a casa da noiva com os presentes. E depois vem a festa
rija. Entre os presentes, é de bom tom oferecer uma bengala, roupa e sapatos ao
pai, um conjunto completo à mãe, capulanas a dar com pau e utensílios de
cozinha.
Existem
mais uma série de detalhes que não domino de todo. Por exemplo, nos dias que
antecedem a cerimónia religiosa, a noiva é totalmente coberta com duas
capulanas unidas por uma barra de linho e é acomodada no chão, em cima de uma
esteira. A família do noivo atira dinheiro e, quando a família da noiva e/ou a
noiva, consideram que é suficiente, a noiva destapa-se. Antigamente, em muitos
casos, o noivo não via a noiva até este momento. Imagino que alguns devem ter
apanhado grandes sustos.
Em
Moçambique a violência doméstica ainda é o pão nosso de cada dia. Existem uma
série de observatórios, gabinetes, comités etc...de apoio e protecção à mulher
mas na prática a mulher ainda é muito vulnerável, o elo mais fraco. A própria
cultura incentiva ao mal trato. O homem que não bate na mulher “não é homem”. E
quando bate, se a mulher decide apresentar queixa às autoridades é “porque não
ama” esse homem de verdade. Existe um ciclo vicioso entre a cultura e a lei. No
caso de a mulher ser lobolada a coisa complica-se, porque se ela decidir que
não quer mais estar com o marido que a espanca, que lhe é infiel, que a
contagiou com uma DST, a própria família dela apresenta-lhe uma série de
entraves. Embora a lei já contemple situações como estas, o peso da cultura
fala mais alto. Neste caso, dita que se a mulher decidir sair de casa e
terminar com o casamento, a sua família terá de devolver o valor do lobolo.
Ora, a família não está disposta a isso e pressiona a mulher a “aguentar” e
manter tudo como até então.
Existe
também o detalhe da multa. Em caso de a mulher lobolada já ter filhos do homem
ele terá de pagar um extra por cada filho.
Nos
tempos modernos o sentido do lobolo foi bastante deturpado. Da lista de
exigências fazem parte muitas frivolidades. De qualquer forma, indaguei por
aqui e acoli qual a opinião das mulheres sobre o assunto e se de alguma forma
se sentiam tratadas pelas familias como “mercadoria”. A maioria reconhece que o
lobolo tem essa faceta mas que o peso da tradição e o orgulho de o seguir à
risca é mais forte que qualquer outro factor.
Tudo
isto que acabei de contar faz parte da História da cultura moçambicana.
Deixo-vos a foto de uma lista de lobolo elaborada há dois meses à qual tive
acesso (mas que não fui
expressamente autorizada a publicar. Bandidagem!)
cliquem para aumentar |
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
João Baptista: a destruição de um mito
Na
tentativa de dignificar o “monstro” João Baptista acabei por destruir o mito.(para quem não sabe quem é o dito
cujo sugiro que click aqui)
Numa
bela manhã de Quinta-feira, antes das 9h da manhã, o João Baptista veio ao
orfanato. Ao contrário das aparições anteriores, chegou calmo, e esteve todo o
tempo sentado ao pé do tronco da mangueira, numa atitude bastante
introspectiva.
Mais
de duas horas depois seguia na mesma posição, com o mesmo semblante pacifico.
Decidi aproveitar a oportunidade para conhecê-lo um bocadinho melhor e fui
falar com ele. Pensei também que o facto de as meninas me verem falar com ele
faria com que fossem um bocadinho mais tolerantes.
Sentei-me
muito perto e cumprimentei-o. Perguntei como estava, se já tinha comido
etc...Respondeu-me com um doce sorriso tridental. Disse-me que estava tudo bem,
que as irmãs já lhe tinham oferecido um chá e que ele estava só a descansar.
Comecei a puxar por ele. Jamais havia visto um “monstro” tão fofinho (confesso
que os velhinhos/as são o meu ponto fraco).
Falámos
muito. Contou-me que lutou na guerra pelo lado dos portugueses. Perguntei-lhe
descaradamente porque era tão alto. Pensei que talvez fosse descendente de
algum somali. Disse-me que é filho de um americano com uma moçambicana. E
depois o tico e o teco começaram a dar mostras de estarem avariados. Contou-me
que ele é assim alto quando está doente, porque normalmente costuma ser mais
pequeno. Contou-me também que é negro porque apanhou muito sol e mais umas
quantas histórias da carochinha.
Logo
no inicio da nossa conversa perguntei-lhe como se chama. Senti-me muito
desapontada por saber que afinal o nome dele é Helder. Contei-lhe que as
meninas lhe chamam João Baptista e ele riu-se muito. Chamei-as para o pé de mim
e apresentei-lhes o Sr. Heldér. Algumas apertaram-lhe a mão. Enquanto falávamos
elas começaram a sentar-se à volta dele. Quando me despedi de ele, já estavam
umas dez a pulular por ali. Disseram-me que queriam que ele lesse para elas mas
tinham vergonha de lhe pedir. Achei a situação tão extraordinária que fui a
correr buscar a máquina das fotos.
Conseguimos
tirar quatro fotos antes de ter ficado sem bateria. Fui-me embora e muito tempo
depois elas continuavam à volta dele a ouvir-lhe a histórias.
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
Deus
Sabem
aqueles que me conhecem que eu não sou amiga intima da religião. Estou
igualmente convencida que Deus é uma invenção do Homem. Precisamos acreditar em
algo transcendente, por isso, ao longo dos tempos fomos inventando mitos e
entidades transcendentes. Antes de Cristo, o Homem já acreditava nos deuses e
já tinha os seus rituais de culto religioso. Temo a Deus porque sou uma cobarde
que não consigo cortar com a herança cultural. Desde criança que ouço dizer “Se
fizeres isto, aquilo ou o outro Deus castiga-te”, logo é dificil ter uma
opinião 100% firme e dizer que não existe porque isso, no fundo, é trair a
minha cultura. E se depois existe e me castiga mesmo? Neste pensamento
instintivo de defesa reside a cobardia...
Mas
se me ponho a pensar racionalmente, chego à clara e irrefutável conclusão de
que não existe. Em caso de que existisse seria um elitista, totalmente parcial,
porque só olha para um lado. O outro lado, o das perpétuas injustiças, é
constantemente negligenciado pelo seu olhar. Logo, chego á conclusão que Deus
não existe mas é mais fácil para todos dizer que sim.
Não
quero dizer com isto que em caso de necessidade não me volque a Deus. Acredito,
também, que em caso de necessidade, faz falta acreditar am algo que nos
transporte para fora da nossa realidade. Algo que transcenda o campo terreno
porque a realidade que nos rodeia é demasiado dura. Nesse momento, preferimos
elevar o espírito e é quando alimentamos
a fé.
Também
devo de admitir que sinto uma certa inveja das pessoas que são crentes e que
falam dessa Paz, dessa alegria e dessa companhia que encontram em Cristo. É
sobretudo quando me dói cá dentro e a fé nos Homens escasseia que eu penso que
a minha vida seria muito mais fácil e leve se eu pudesse dizer “olha oh Deus, agora ponho este assunto nas
tuas mãos. Tu é que decides, ok?”.
Bom,
não esperem encontrar no ultimo parágrafo deste texto uma conclusão brilhante.
Senti necessidade de falar sobre este tema aqui no blog. Foi só isso.
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
Eu e a minha holamiga T.F
Qual amiga qual carapuça!!
Na
semana passada recebemos uma visita especial aqui no orfanato. Veio-nos visitar
uma hiper-famosa do jetset espanhol, acompanhada pelo seu séquito de totós!
Eram
umas quinze pessoas e estiveram quatro dias em Moçambique. Visitaram
sobretudo a Casa do Gaiato.
Durante
a estadia usaram o nosso machibombo. A
Consol, uma voluntária espanhola que não deixa escapar uma, utilizou esse facto
para benefício do orfanato e conseguiu convênce-los a visitarem-nos.
À
primeira vista, a famosa T.F, parecia muito tímida e pouco vedeta. Falava tal e
qual os do jet-set, mas de resto parecia uma rapariga muito normal.
Já
as pessoas da equipa que a acompanhavam andavam de cadeias às avessas. Pelo que
pude entender, a ideia da viagem partiu de uma fundação de apoio à infância que
se costuma associar a famosos para conseguir angariar fundos. Na viagem a
Moçambique fez uma parceria com uma empresa dos media que, por sua vez, se
associou a esta famosa que, obviamente, veio à borlix.
Os
da fundação estavam como loucos porque o plano inicial era promover as
necessidades dos projectos locais, mas a empresa dos media passou o tempo todo
a fotografar e filmar a T.F, sempre bem penteada e maquilhada por um
profissional que a acomponhou todo o tempo. Os da fundação estavam piursos. Ao
fim de dois minutos de conversação com o David, a presidente da fundação- uma
amiga íntima do botox- disse cobras e lagartos da T.F. Precisava desabafar!
Decidiram
fazer uma reportagem com a T.F. e com as irmãs a falarem sobre o orfanato e as
necessidades presentes. Pediram-me para fazer de interprete. Tivémos de simular
uma conversa enquanto nos filmavam de longe. A T.F. fez-me várias perguntas e
quando eu respondia disse-me “ok, ok, agora contas isso quando estiverem a
gravar o som, ok?”. Repetiu a façanha com as irmãs. Quando elas lhe contavam
alguma coisa ou falavam sobre alguma necessidade, ela dizia-lhes para falarem
sobre isso quando a câmara estivesse a gravar o som.
Eu
fiquei com a sensação que esta mulher está-se a borrifar para os projectos.
Veio aqui com um séquito impressionante, olhava para tudo com muito nojo, não
fez qualquer carícia a nenhuma das crianças e, agora em Espanha, há-de vender
uma parnafenália imensa de fotos e reportagens às revistas cor-de-rosa, rodeada
de crianças sujas e ranhosas que ela não tem nem ideia de como é que se chamam
e que, provavelmente, dão-lhe nojo.
Perguntou-me,
também, pelos meus estudos. Quando lhe disse a resposta dela foi “Ah, mas com
isso podes encontrar trabalho em qualquer parte do mundo.” Como se o meu pai
(tal como o pai dela) fosse um nobre, o Marquês de Faria em pessoa!!
A
coisa não termina por aqui. Quando se foi embora ofereceu à Consol um saco da
Panama Jack cheio de medicamentos. A maioria são paracetamol. Havia também umas
vitaminas para a energia e para o ânimo. Contudo, ficámos seriamente intrigados
quando descobrimos uns comprimidos inibidores de testosterona. E o mais
esquisito é que faltavam uns quantos! O séquito dela estava constituido
maioritáriamente por gays. Como poderão imaginar temos especulado bastante
sobre este detalhe... (EHEHEHEHEH)
Soube
por terceiros, que a pequena quando chegou a casa do embaixador de Espanha,
esteve uma hora enfiada no W.C. Quando saíu exclamou alegremente “aaaaaaaaiiii
que saudades que eu tinha de umas toalhas brancas”.
Resumindo,
durante quatro dias, estiveram cerca de quinze pessoas na outra ponta do mundo.
No total não terão gasto menos de 15.000€. Sabemos que deixaram cerca de 3.500€
para diferentes projectos. Enfim, tirem vocês as conclusões...
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
Insólitos sala de aula #9
Elas
são muito irriquietas e brincalhonas. Estão sempre a inventar desculpas para
sairem da sala de aula. Normalmente todas têm vontade de fazer xixi ao mesmo
tempo.
Como
sou uma professora muito má, só deixo ir uma de cada vez, para evitar
“ajuntamentos” no pátio ou nos W.C.( vocês não imaginam as confusões que elas
armam em menos de dois minutos. São autênticas máquinas de fazer disparates).
Quando
elas me perguntam se podem ir à casa-de-banho, eu costumo dizer-lhes “Sim, mas
vai a voar”, como quem diz “vai num pé e vem noutro”.
Foi,
pois, com grande alegria e regozijo que descobri há algum tempo que elas vão
mesmo a voar. Abrem os braços, “batem as asas” e vão e voltam a correr.
quarta-feira, 11 de setembro de 2013
João Baptista
O
João Baptista é um sem-abrigo que costuma vir ao orfanato mendigar. Normalmente
vem uma vez por semana. Tem mais de 2 metros de altura, uma muleta e assim que ele
chega o terror e o histerismo instalam-se entre as meninas. Correm como baratas
tontas e tentam ficar a uma boa distância de segurança.
O
João Baptista quando chega pede logo comida. Quando está de bom-humor fica para
ali, debaixo da mangueira, a falar coisas que só ele é que entende. Mas quando
está com os azeites o melhor é mesmo fugir. Põe-se a gritar a dizer que precisa
de comer e que não se vai embora enquanto não lhe derem um prato de comida, que
ele tem os seus direitos, que é muito alto e que precisa comer. Quando se
chateia a sério ameaça toda a gente com a muleta.
Não
acredito que o João Baptista seja perigoso. Já o vi muito zangado mas nunca o
vi ser mesmo violento com ninguém. Acho engraçado que elas tenham estes
“monstros” que lhes povoam a infância e adolescência. Quando forem mães e avós
vão contar aos seus pequenos que quando elas também eram pequenas havia um tal
de João Baptista que era um demónio.
terça-feira, 10 de setembro de 2013
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
Cemitério S. Francisco Xavier, aka, Cemitério da Ronil
Foi
há quase 10 meses que cheguei a Moçambique e desde as primeiras viagens de
carro pela gigante Av. Eduardo Mondlane que me sinto intrigada/fascinada pela
presença de um cemitério fantasma.
Aliás, ao principio eu não sabia que era um cemitério fantasma mas
chamou-me a atenção o facto de,através de muro, ver sumptuosos jazigos no meio
de tantas árvores gigantes e mato que ultrapassa a altura das construções.
Um
dia espreitei por cima dos muros e fiquei impressionada com o cenário halloweenesco. Os jazigos e as
sepulturas estão violados e tudo estava coberto de mato. O imponente portão
principal serve de entrada ao W.C que há anos os transeuntes improvisaram. No
cemitério da Eduardo Mondlane é caso para dizer que se mija em cima da campa
dos outros!
E
não foi menor a minha supresa quando, ao virar da esquina, encontrei um
cemitério judaico que parece o próprio paraíso, e um cemitério mulçumano que,
embora não esteja tão bem conservado como o anterior, não tem aspecto de estar
abandonado.
Fui
indagando e, até hoje, não consegui respostas muito esclarecedoras. As
pesquisas na internet acrescentam poucos dados à minha curiosidade. Os nativos
pouco sabem sobre o passado e o futuro do cemitério mas dizem-me para me dirigir
ao Município, no entanto tenho aprendido que em Moçambique a curiosidade e as
autoridades públicas não são uma boa mistura.
Mesmo
assim consegui descobrir que se chama Cemitério S. Francisco Xavier ou
Cemitério da Ronil. É o priméiro cemitério da cidade de Maputo, construído
ainda durante o séc.XIX. Até 1974 foram sepultados corpos em jazigos e campas
familiares mas desde 1955 que já não se faziam funerais. Os defuntos são
sobretudo cidadãos de origem portuguesa e, após a independência, o cemitério
foi abandonado por motivos óbvios. Aliás, não deixa de chamar a atenção que
numa cultura onde os antepassados têm uma importância tão grande, se deixem ao abandono e se permita vandalizar
centenas de sepulturas sob o olhar pacifico das autoridades. Porque é uma
questão de permissão já que o cemitério está no epicentro da cidade. Logo, é
impossível ignorar a sua existência e aparência.
Nas
minhas pesquisas boca-a-boca, falaram-me de uns quantos mitos urbanos sobre as
intenções do Município em relação ao espaço que o cemitério ocupa. Uns dizem
que se fala da construção de um parque de estacionamento, outros na construção
de um centro comercial. Várias pessoas- moçambicanas e estrangeiras-
disseram-me que há alguns anos a cooperação portuguesa recebeu uma verba
avolutada para a rehabilitação do cemitério e adaptação a monumento histórico,
ao estilo Père-lachaise, em Paris, no entanto, até hoje
nada foi feito. Outras vozes reclamam que o espaço, devido ao seu carácter
histórico e beleza arquitectónica, deveria ser convertido em Panteão Nacional
e acolher os corpos de personalidades importantes de Moçambique.
O mais preocupante é que não é o unico cemitério
de portugueses que está vetado ao abandono. Em Mueda, na provincia de Cabo Delgado, há um
cemitério onde foram sepultados soldados mortos na guerra colonial/libertação,
que está exactamente nas mesmas condições. Deixo-vos aqui o link de um
documentário da SIC que denuncia a situação.
Entretanto, o Cemitério de São Francisco Xavier é
utilizado como morada de muitos sem-abrigo VIVOS. As sepulturas são
vandalizadas e a madeira dos caixões é utilizada para fazer fogos que aquecem
as noites mais frias ou para preparar alimentos. Em Julho, houve um incêndio
que destruíu, ainda mais, parte do cemitério. As fotos que aqui vos deixo foram
tiradas há cerca de duas semanas, já depois do incêndio, por isso o mato não
está tão grande.
Visto desde fora |
Entrada Principal |
Sepulturas violadas e caixões abertos |
Sepultura violada |
Jazigos violados |
Vista parcial |
Cemitério Judaico
Cemitério mulçumano, com todas as campas
direccionadas a Meca.
Entrada no Cemitério mulçumano |
quarta-feira, 4 de setembro de 2013
Insólitos sala de aula #8
É muito comum as meninas “descuidarem-se” na sala
de aula. Quando isso acontece eu abro as janelas. Se o cheiro persiste,
chamo-lhes a atenção.
Um destes dias o cheiro não passava nunca mais, por
isso disse-lhes:
-Então meninas, já se bufaram outra vez?
A E., de 8 anos, aproveitou a deixa para se
revoltar contra a A., de 8 anos. Estava realmente indignada. Dizia que assim
não se podia estar, que acontecia sempre o mesmo, que a A.era sempre igual
etc...etc...
Como a vi tão segura das acusações que estava a
fazer e que, inclusivé, as colegas a apoiavam, iniciei um insólito diálogo:
- Mas oh E. como é que tu sabes que foi a A.?
- Mana Sónia, eu juro que sei, eu juro que foi ela
porque os peidos dela cheiram a pessoa (pissôa).
- Então e os das outras pessoas cheiram a quê?
- tchééééé
os da Y. cheiram a comprimidos, os da A.E. cheiram a lombrigas...
- Ah e tu consegues saber quem se descuidou só pelo
cheiro? És bufóloga?
- (muito orgulhosa do seu talento natural) SIIIIIM,
eu consigo adivinhar quem se descuidou até no escuro, acerto sempre...
Insólitos sala de aula #7
Estávamos na aula a falar sobre pessoas charás,
aka, homónimas. Eu contei-lhes que no orfanato além de duas charás minhas, há
também charás da minha mãe, irmã, tia e sobrinha.
Elas quiseram então saber como é que se chamam
toooodas as pessoas da minha família. Disse-lhes os nomes de quase todos os
meus parentes, inclusivé dos meus 22 primos direitos. Elas perceberam que ainda
não sabiam os nomes dos meus tios. Então, já muito cansada, fiz cara de frete,
suspirei e respondi-lhes:
-Pffffffff ....sei lá, Joaquim, António, Mariano
etc...
A T., de 7 anos, olhou para mim muito incrédula e
disse com a maior ingenuidade:
- tchééééééé
mana Sónia, você tem mesmo um tio que se chama Pffffffff????
Subscrever:
Mensagens (Atom)